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“O sofrimento emocional também é problema da escola”

Atualizado: 22 de nov. de 2022

Especialista liderou pesquisas e ações que mostram como as equipes de ajuda entre estudantes e seus colegas resolvem questões de convivência — e deveriam se tornar política pública nas escolas

A seguir, entrevista veiculada pelo Itaú Social (Instituto de Desenvolvimento Social e Econômico) em 29 de agosto de 2022.


Dez perguntas para Luciene Tognetta

Pesquisadora da Unesp e líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral (Gepem) e coordenadora da pesquisa A Convivência como Valor nas Escolas Públicas: Implantação de um Sistema de Apoio entre Iguais

A pesquisadora Luciene Tognetta propõe o protagonismo dos jovens na resolução de questões sobre o bullying: “O jovem defende bandeiras, abraça causas e sua geração já está mais acostumada com a diversidade. O que falta é oferecer formação, dar instrumentos aos alunos”. Foto: Arquivo pessoal
 

Por Maggi Krause, Rede Galápagos, São Paulo


Como ajudar quem estava sofrendo de depressão, com as consequências de cyberbullying, ou acuado por medo e solidão durante a pandemia? Luciene Tognetta, pesquisadora e professora do Departamento de Psicologia da Educação da Unesp, lembra que o isolamento exigiu dos adolescentes uma estrutura que eles não tinham. “Teria sido mais fácil se a escola desenvolvesse a autonomia intelectual.” A especialista da área de convivência e bullying e líder do Gepem (Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral) coordenou a pesquisa A Convivência como Valor nas Escolas Públicas: Implantação de um Sistema de Apoio entre Iguais, que investiga os desafios dos estudantes ao conviver na escola e nos ambientes virtuais e aponta que as equipes de ajuda são a melhor maneira de solucionar o bullying e apoiar quem experimenta sofrimento emocional.


O primeiro questionário do clima escolar foi aplicado ainda em 2019 e teve alto número de respondentes do estado de São Paulo inteiro (foram 945.481 estudantes, 16.648 membros de equipes gestoras das escolas e 64.984 docentes dos anos finais do ensino fundamental). O objetivo era oferecer dados para autoavaliação e planejamento de ações da escola a partir da percepção de gestores, professores e alunos. Depois dessa escuta inicial, o processo seguiu e se transformou durante a pandemia: incluiu formações com docentes e gestores escolares, investigações sobre problemas dentro e fora da escola e elaboração de materiais, entre eles um Sistema de Apoio entre Iguais, que contou com a contribuição de estudantes e da rede de equipes de ajuda do Brasil para escutar, acolher e incentivar os mais de 29.500 estudantes das escolas públicas das duas diretorias de ensino do estado de São Paulo.


A pesquisa fez parte do edital “Anos finais do ensino fundamental: adolescências, qualidade e equidade na escola pública”, que fomenta, apoia e dissemina pesquisas que apontem recomendações para a construção de soluções e superação dos desafios no período escolar do 6º ao 9º ano, promovendo a interação entre a academia e a realidade escolar. “O financiamento foi imprescindível para toda essa construção, que incluiu filmagens e edições dos alunos e muitas reuniões com gestores e professores”, destaca Luciene, que elogia a confiança do Itaú Social e da Fundação Carlos Chagas (FCC) diante das mudanças de rota devido à pandemia. “Para a iniciativa das equipes de ajuda foi um divisor de águas, pois aprendemos que, com rigor científico, é possível transformá-las em uma política pública. E para isso têm todo o potencial.” Na entrevista a seguir, a coordenadora conta sobre as estratégias e os muitos frutos da pesquisa.

 

Notícias da Educação — Quais são os principais problemas que afetam a convivência e a saúde emocional de crianças e adolescentes na escola?


Luciene Tognetta — Elaboramos um questionário de convivência na pandemia para tentar diagnosticar os problemas mais comuns e sensíveis do período e ouvimos quase 2 mil alunos. Os problemas que mais se acentuaram foram os da convivência virtual, e uma das maiores dificuldades é como trazer esse tema para dentro da escola, porque é dentro dela que ele explode. Só que muitos professores se negam a entender que ele deve ser trabalhado como elemento do currículo. O segundo ponto mais relevante é o da saúde mental, que nós, no Gepem, preferimos denominar sofrimento emocional, pois a escola não dá tratamento clínico, e questões de saúde são da medicina. Dele fazem parte a depressão, a idealização suicida, as automutilações, os medos e as preocupações. É preciso estar alerta porque as crianças sentem da mesma maneira que os adultos. Não dá para fugir; o sofrimento emocional também é problema da escola.


Notícias da Educação — pergunta a que a pesquisa procurou responder foi: “Como equacionar as exigências trazidas pela complexidade do extenso período de afastamento do contexto presencial da escola com a urgente necessidade de prevenção às violências e a aprendizagem de uma convivência positiva nos anos finais do ensino fundamental?”. Quais foram as estratégias traçadas para responder a ela?


Luciene Tognetta — A primeira coisa em que pensamos foi diagnosticar e ensinar as escolas a olhar para a realidade não com achismo, mas usando instrumentos de pesquisa para esse fim. Analisar os dados, entender o que é mais urgente e como eu busco ajuda para saber enfrentar. Nós nos reunimos com os professores em ciclos formativos para pensar estratégias e identificar questões relacionadas a temas do desenvolvimento moral. Por exemplo: perseguições, calúnias ou as fake news da vida virtual são ligadas ao fato de que o adolescente se porta mal na internet. Não é porque a internet é a vilã, mas porque ele não tem condições de se regular e transformar a sua atitude. Para equacionar essa questão, nosso objetivo era trabalhar com equipes de ajuda. Desde a década de 80, essa é considerada a forma mais eficaz de combate ao bullying e aos problemas paralelos a ele.


Notícias da Educação —Por que o trabalho com as equipes de ajuda e o protagonismo é tão eficaz?


Luciene Tognetta — Ele funciona porque é um tipo de sistema de apoio entre iguais – os estudantes e seus colegas. E existem várias justificativas para sua eficácia. A primeira é: quem sabe quando um garoto está sendo hostilizado nas redes sociais, ou quando é intimidado ou menosprezado no recreio, na saída, na sala de aula? São os alunos, também capazes de abordar o colega e se comunicar na mesma linguagem. O protagonismo é importante porque o jovem defende bandeiras, abraça causas e sua geração já está mais acostumada com a diversidade. O que falta é oferecer formação, dar instrumentos aos alunos. Os espectadores de bullying são maioria e, em geral, não agem porque não sabem o que fazer. Quem integra uma equipe de ajuda sai com treinamento para isso.


Notícias da Educação —Pode explicar o que é e como funcionou, durante a pandemia, o Sistema de Apoio entre Iguais?


Luciene Tognetta — Nosso grande desafio era como chegar aos alunos. Como quem estava em casa teria autonomia intelectual para agir sozinho, sem apoio de professores? Como o Gepem conta com mais de 30 escolas da rede de equipes de ajuda, o Itaú Social e a FCC financiaram a organização de iniciativas da rede que geraram conteúdos para isso. Os alunos que já participavam de equipes de ajuda montaram uma proposta relacionada aos problemas de ciberconvivência e sofrimento emocional, gerando a publicação O que Cabe em um Abraço?. Ela foi entregue a 29.500 jovens dos anos finais do ensino fundamental no estado de São Paulo em novembro do ano passado. No site Somos contra o bullying é possível consultar vídeos dos alunos, baixar materiais e acessar o passo a passo de implementação do Sistema de Apoio entre Iguais.


Notícias da Educação —Quais foram as formas de acolhimento e de incentivo mais recorrentes e que funcionaram melhor?


Luciene Tognetta — Os alunos tentaram ajudar os outros a pensar em coisas boas, a lembrar do que gostam, de quem são amigos, de quem têm saudade… Uma questão que os tutores precisaram trabalhar com os participantes foi quanto era difícil imaginar fazer o bem para quem não se conhece e sem ver o resultado depois. Então, elaborar o livrinho foi uma necessidade de trabalhar isso com eles… uma forma de materializar as ideias, ainda que sem possibilidade de saber como o material ajudou.


Notícias da Educação —Pode dar exemplos de impacto do sistema de apoio dentro e fora da escola?


Luciene Tognetta — Nas pesquisas qualitativas que fizemos, ficou evidente em depoimentos de alunos quanto eles aprendem. Uma das meninas disse que “participar das equipes de ajuda faz diferença, é para levar para a vida toda. Se em casa tenho um problema com meu irmão ou um conflito no acampamento, eu penso no treinamento que tive e vou resolver o problema”. Fomos procurados pela Faculdade Getúlio Vargas, pois apareceram situações de homofobia e assédio nas festas e alguns alunos disseram que poderiam ajudar a resolver (tinham participado da equipe de ajuda do Colégio Bandeirantes). No município de Sumaré, escolas do Sistema S relataram a mesma atitude de ex-alunos da escola pública que tinham passado pelos grupos do Gepem.


Notícias da Educação —A pesquisa apontou que boa parte das ciberagressões são cometidas por adolescentes que não têm computador nem celulares em sua casa. O que isso significa? De que formas a escola pode agir para evitar problemas de ciberconvivência?


Luciene Tognetta — Esse dado mostra que não dá mais para achar que o problema da internet é da família. E aponta para uma constatação: alguém vai ter que assumir esse trabalho. Claro que é responsabilidade da família e da escola, mas não tem como abrir mão dessa temática de ciberconvivência. E não adianta dizer que vai tratar disso transversalmente porque fica com um monte de donos e ninguém cuida… é necessário reservar aulas e estruturar um trabalho curricular.


Notícias da Educação —Quais são os principais procedimentos de intervenção e de prevenção aos problemas de convivência? Quais as dificuldades para implantá-los nas escolas?


Luciene Tognetta — Faz falta uma política pública que institucionalize a questão de convivência. Em geral, nas secretarias de educação, existe um grupo que trabalha com currículo, outro com convivência, outro com saúde mental. Nas escolas todas essas estratégias entram de forma justaposta e não conversam entre si. Não existe uma política robusta de formação de professores, são formações de duas horas cada, uma sobre competência socioemocional, outra sobre saúde mental, outra sobre projeto de vida… os elementos não se conectam e o professor passa a ser um cumpridor de tarefas. Gostaria de registrar que experimentamos uma grande dor com o desmonte do Conviva, o Programa de Melhoria da Convivência e Proteção Escolar no estado de São Paulo, que era uma conquista das escolas em relação ao tema e que foi suspenso por questões políticas.


Notícias da Educação —Quais foram os maiores aprendizados e conquistas da pesquisa?


Luciene Tognetta — A intenção do edital era trabalhar com projetos que tivessem potencial de serem replicados e transformados em política pública. Testamos, na parte de atuação formativa do projeto, as ondas de replicação da formação de professores. A primeira escala de formação foi feita entre nós e os gestores; a segunda, entre os gestores e os coordenadores; a terceira chegava aos professores. Mas o conteúdo de horas foi diminuindo, ou seja, os docentes só tiveram 4 horas formativas (das 16 horas da primeira escala), o que é preocupante. Um lado positivo é que uma das pesquisas ouviu as queixas dos professores, o que nos permite atuar para dar a eles o que mais precisam. E outra grande conquista foi reiterar a importância da participação dos alunos. Ainda que tenha sido com as escolas particulares, garantimos o pressuposto de que aluno faz a diferença. A divulgação do material das pesquisas, do relatório e das lives amplia o alcance do Sistema de Apoio entre Iguais.


Notícias da Educação —Em uma das investigações, vocês constataram que o índice de sofrimento emocional é maior para as meninas e para os estudantes negros, independentemente de gênero. Como o tema do racismo pode ser trabalhado nas escolas com o objetivo de solucionar problemas de convivência?


Luciene Tognetta — As questões de racismo ou de diversidade podem ser trabalhadas quando os próprios alunos assumem a tarefa de formar os pares e intervir nas relações entre si, pois são eles que vivenciam esses problemas. Seguimos a epistemologia genética piagetiana, que defende trabalho em grupo em ambiente colaborativo e a construção da identidade a partir da ação do sujeito. O professor instituir um dia para falar de racismo é muito diferente de quando os estudantes são chamados para pensar estratégias para lidar com ele. Por isso o protagonismo e a valorização das relações entre pares são tão necessários nas nossas escolas.

Cultivando o conviver

Dez recomendações da pesquisa A Convivência como Valor nas Escolas Públicas: Implantação de um Sistema de Apoio entre Iguais.


  1. Fazer um diagnóstico do clima e da convivência escolar: conhecer, enfrentar e transformar;

  2. Construir um plano para a convivência;

  3. Incluir novas dimensões do clima relacional e da convivência (como ciber-relações e interpessoais);

  4. Elaborar um plano intencional de trabalho com as questões emocionais;

  5. Promover uma ciberconvivência respeitosa;

  6. Oferecer acolhimento para crianças e adolescentes na escola, na família e na rede de proteção;

  7. Formar professores e ter políticas públicas para a convivência;

  8. Enfrentar novos desafios e novas temáticas (como brigas em ambientes virtuais);

  9. Valorizar a importância dos pares;

  10. Reconhecer a importância do método científico.




Mário Joanoni - MTb 025.546

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